Por José Marcelo Pereira
Antiga Rua da Ponte |
Nos anos 1960, na Rua Demócrito Gracindo, conhecida
como Rua da Ponte, viviam a lavadeira Maria Rosa e sua família. Nessa época, o
Brasil passou a viver os chamados anos de chumbo, com impedimentos das
liberdades. Mas Maria Rosa e os seus desconheciam o que se passava no País,
assim como a maioria da população.
Eles seguiam sua rotina, sem tomar conhecimento de
assuntos complicados, além daqueles do seu dia a dia.. As notícias sobre as
ações dos militares como as prisões e tortura não eram divulgadas até então,
pelo menos para maioria daqueles moradores, trabalhadores ou desafortunados
diversos. O País passou por grandes transformações, como a revolução cultural,
a participação popular em questões sociais e políticas e o Aprofundamento do
processo de industrialização. No interior, o trabalho rural continuava a
ser realizado com engenhos que moviam culturas como o a cana de açúcar, milho e
o algodão. A moeda era o Cruzeiro (1942-1967); depois Cruzeiro novo
(1967-1970).
A década de 60 foi marcada por acontecimentos
políticos e sociais turbulentos, como a renúncia de Jânio Quadros em agosto de
1961, assumindo João Goulart, ou Jango, como era conhecido, empossado na
presidência da República, em 7 de setembro do mesmo ano. Além disso,
teve a aprovação pelo Congresso da emenda constitucional que instaurou o regime
parlamentarista de governo; fechamento do Congresso; muitas mudanças de
governo; subversão armada; luta estudantil; guerrilha e tortura. No cenário
cultural, a década foi marcada pelo surgimento do Tropicalismo e da Jovem
Guarda; a popularização do Rock and Roll e valorização do estilo individual; os
jovens defendendo o seu estilo de vida e de se vestir.
No final da década, em 1969, aconteceu um grande
festival que revolucionaria os costumes. O festival de woodstock,
que foi um evento musical que aconteceu entre os dias 15 e 18 de
agosto de 1969, na fazenda de Max Yasgur, em Bethel, Nova York, nos Estados
Unidos e foi um marco da contracultura e da música da década. (*).
***
A lavadeira Maria Rosa era religiosa, devota de
Santa Maria Madalena; ia todos os domingos à missa, e desconhecia qualquer
informação que não fosse do seu dia a dia e se concentrava na família e no seu
trabalho, para sustentar a família. Morava próximo à fábrica de doces, no final
da Rua da Ponte, alheia ao que se passava no País e no mundo. Sabia apenas o
que conversava com as amigas, quando estava lavando roupas ou fazendo outra
tarefa do dia, como lavar pratos e tomar banho de rio.
Maria Rossa dava duro para colocar comida na mesa,
visto que o marido, José da Rosa, como era conhecido o mancebo, não tinha
emprego fixo e vivia de pequenos biscates, quando aparecia. Tinha uma vida de
mistérios. A mulher lavava e passava para várias famílias na terra da
liberdade. Passava as roupas com ferro de brasa, quando sequer tinha água
encanada na Rua da Ponte e os eletrodomésticos eram raros ou não existiam para
as populações pouco ou nada assistidas. Àquela época o Mundaú não tinha um alto
grau de poluição, como nos dias de hoje. Quando terminava de passar e dobrar
cada trouxa de roupa, ela ia fazer entrega com a filha mais velha, Rosa
Maria.
Analfabeta, décima filha de pais pretos, nasceu no
povoado quilombola Muquém, cuja população sobrevive até os dias atuais da venda
de peças feitas do barro e agora da preservação da cultura negra. Panelas
potes, quartinhas, frigideiras, moringas e tudo o que eles produziam e produzem
nos dias atuais são vendidos na feira livre de União dos Palmares, aos sábados.
A maioria do trabalho feito por mulheres.
José da Rosa e Maria Rosa se conheceram na festa da
Rua da Ponte, que era uma atração para os moradores, com seus barquinhos
verdes, puxados por corda, até chegarem às alturas. Na festa, a animação ficava
por conta das quermesses, pescarias e iguarias como carne assada, cachorro
quente e maçã do amor, que faziam a animação dos moradores. Além disso, músicas
românticas, por meio de alto falante corneta e bebidas.
Quando tinha festa, fosse na Rua da Ponte ou na Rua
do Jatobá, do outro lado do rio, homens saiam pelas ruas com a imagem da santa,
ou do santo padroeiro, durante o dia, jogando um pano branco no ombro, tocando
pífano e zabumba, pedindo contribuição aos devotos que quisessem ajudar. assim
se dava nas festas do interior mais longínquo do País e em União dos Palmares,
em Alagoas, não era diferente e muitos bairros adotavam as festas de rua, com
seu santo padroeiro.
Maria Rosa e José da Rosa, começaram a namorar e
foi tudo muito rápido, até irem morar junto, mas não casaram no padre ou no
cartório. Viviam, popularmente falando, amasiados. E ela não se ligava muito a
essas tradições e burocracias da sociedade dominante. Tiveram quatro filhos,
todos nasceram de parto normal: Rosa Maria, Maria
José, Maria Quitéria e José Joaquim, o Quinzinho, que não cansava de
dar preocupação para Maria Rosa, por causa das suas traquinagens.
A mãe lhe dava conselhos e temia pelo seu futuro, e
quando José chegava em casa à noite, pedia que o marido conversasse com
Quinzinho, mostrando-lhe os perigos do mundo. O marido, por sua vez, achava ser
tudo exagero da mulher e não tomava nenhuma atitude.
Tentava uma conversa franca e aberta com
seu marido sobre suas preocupações e expectativas em relação ao
relacionamento e o com comportamento do filho, mas de nada adiantava. Na
realidade, José não queria se envolver com nada que dissesse respeito a sua
casa e a mulher estranhava aquele comportamento.
Achava esquisito aquele modo de agir de José, mas
ela silenciava, para não comprar brigas maiores. No entanto, alguma
coisa estava fora de ordem, pensava. Maria Rosa, em momentos de aflição, pedia
proteção para os filhos:
“Meu Senhor e meu Deus, proteja minha família de
todos os males do mundo. Minha santinha, Maria Madalena, intercede junto ao
Senhor Jesus Cristo, para que nada de ruim aconteça com meus filhos. Amém”.
Num dia da sua rotina diária
e conversando com as amigas; colocando suas preocupações, uma
delas sugeriu que falasse com a esposa do prefeito, dona Constância Madalena,
para quem Maria Rosa lavava roupa e engomava, solicitando que a mulher
arrumasse um colégio interno para o filho.
O menino era muito sabido, inteligente, mas chegou
na adolescência dando muito trabalho para Maria Rosa. Ele via a situação da mãe
na labuta, era revoltado com o pai, José da Rosa, que não era de agrados, nem
com os filhos, nem com a mulher. Era sisudo e misterioso, além de
conservador e um tanto quanto ignorante com todos em casa, e Maria Rosa evitava
discutir com ele, se fechando “em copas”, quando devia questioná-lo.
Rosa Maria, a filha mais velha, se atrasara nos
estudos e fazia o Mobral, com a professora Josete Maria, com quem aprendeu as
primeiras letras, na Escolinha do Bangu, que décadas depois foi levada por uma
das enchentes, acontecida em 1989. O Mobral era o antigo programa de
alfabetização do governo, que anos depois foi substituído pelo EJA – Educação
de Jovens e Adultos, criado para quem se atrasou nos[O1] estudos.
Rosa Maria estudava à noite, visto que durante o
dia, quando não estava ajudando a mãe na lida doméstica e com as roupas das
clientes, aproveitava para aprender a trabalhar com o barro, com os fazedores
de panelas da Rua da Ponte. Queria sair de casa, casar e constituir família,
mas não achava tempo para sair com amigas e conhecer rapazes, já que vivia para
ajudar a mãe a criar os irmãos, aprender a lidar com o barro e tentar se
adiantar nos estudos. E ela cumpria sua sina, andando pelas ruas e becos da
cidade, entregando as roupas lavadas, com muito cuidado.
Era uma tradição no interior de Alagoas, assim como
em outros estados do país o exercício de lavar roupa à beira dos rios e nos
açudes quando estavam cheios, às primeiras horas do dia ou do fim da
tarde. As mulheres usavam pedras ou tábuas como se fossem a parte do
tanque e que serviam para esfregar e bater as peças usadas no dia a dia e
também roupas de cama, mesa e banho.
E para muitas dessas mulheres, lavar roupa era
também uma profissão, mesmo em condições, muitas vezes precárias. Era dali que
saia o dinheiro que ajudava a manter as contas em dia, comprar o alimento e
tudo mais que era necessário para educar os filhos. Com a poluição dos rios,
açudes e lagoas, a chegada de água nas casas, avanço das tecnologias, essa
atividade foi acabando, ficando restrita em alguns povoados longínquos.
O escritor alagoano Graciliano Ramos, na obra
Linhas Tortas (1962) disse que: “O ofício de escrever deveria ser realizado com
o mesmo rigor que as lavadeiras de Alagoas fazem o seu trabalho: elas começam
com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho,
torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e
torcem uma, duas vezes”.
***
As dificuldades para os moradores da
Rua da Ponte, principalmente para as donas de casa, eram enormes. Da mesma
forma que não havia água encanada e nem para beber, nos anos 60, a maioria da
gente da Demócrito Gracindo e das proximidades se valiam das cacimbas das
fazendas, para obterem água limpa para beber. Era comum a romaria de mulheres e
crianças com latas d’água na cabeça, até o local da cacimba e vice-versa.
Quando chegavam em casa, colocavam um pano limpo na boca do pote ou de outro
recipiente, para que aquela água fosse coada e pudesse ser consumida.
A Rua da Ponte chegou
a ter uma fábrica de doces, próxima a casa da família de Maria Rosa. Alguns
moradores do município, eram empregados da fábrica, que depois veio a falir e
fechou, deixando alguns trabalhadores desempregados, pois a opção de emprego na
cidade era escassa naquele tempo. O prédio ficou em ruínas, até que a enchente
de 2010 levou tudo. Nos fundos da Fábrica de doces, a gente da rua também
aproveitava para tirar o barro, para fazer panelas, quando a lagoa, braço do
Rio Mundaú, estava seca.
Já os moradores dos sítios e dos
povoados, depois que vendiam os produtos, na feira livre, iam fazer as compras
semanais e de mês nas mercearias do lado de baixo da cidade. Alguns
adolescentes de União tiveram seus primeiros empregos despachando e ajudando nas
mercearias, de União dos Palmares.
Maria Rosa também fazia as compras do
mês em uma mercearia, no começo da Rua da Ponte; comprava fiado e pagava quando
recebia das clientes. Era assim que funcionava esse tipo de comércio: a maioria
na confiança de quem vendia, que anotava tudo em um caderno ou caderneta. Na
Rua da Ponte também tinha nessa época uma fábrica rústica de colchão de capim,
do “seu” Francisco, um armazém de compras e vendas de cereais, de João Jonas
(nosso pai, que também tinha bodega, como ele chamava), um hotel do sr. José
Otacílio (Zeca), quando a entrada principal de União dos Palmares acontecia
naquela região, e os viajantes transitavam pela ponte rústica de madeira,
desativada pelas enchentes, no povoado Cabeça de Porco.
Além disso, mulheres idosas que benziam
a pessoa, ou algum animal doméstico de algum mal. O bar do sr. Antônio Timóteo
e do Lourão; o alambique do sr Orlando Baia, que fabricava vinagre, Cajuvita e
cachaça; a oficina mecânica do sr. Abdon Copertino e também paragem de ônibus
para Garanhuns, local de espera para Mundaú Mirim, como era denominada a hoje
cidade Santana do Mundaú.
Todo esse aparato movimentava a
economia local. A Rua da Ponte sempre foi uma das mais importantes e queridas
ruas da região, pela sua importância, para o desenvolvimento do município, pois
o movimento de ônibus e carros que abasteciam o mercado interno era sempre por
ali.